terça-feira, 29 de novembro de 2011

Morte


Eu me surpreendo indagando sobre a humanidade. Sua atitude para com a dádiva da minha irmã é tão estranha.
Porque temem as terras sem sol? É tão natural morrer quanto nascer.
Mas todos tem medo. Se apavoram. Debilmente tentam aplacar o seu toque. Eles não a amam.
Há milhares de anos ouvi uma canção em um sonho, uma canção de morte que a exaltava.
Eu ainda me lembro.
‘A morte está diante de mim hoje: como a recuperação de um doente, como a ida a um jardim após a enfermidade.
A morte está diante de mim hoje: como o odor da mirra, como se sentada sob um velame num bom vento.
A morte está diante de mim hoje: como a maldição de um ribeirão, como o retorno de um homem da guerra para a sua casa.
A morte está diante de mim hoje: como o lar que um homem anseia ver, após anos passados como cativo.’
Esse poeta desconhecido compreendeu as dádivas dela.
Minha irmã tem uma missão a cumprir, assim como eu. Os perpétuos tem responsabilidades. Eu tenho responsabilidades.

- GAIMAN, Neil.

Essa citação aparece na 8ª edição, no arco Sandman: Terra dos Sonhos. Ela é relativamente conhecida dentre os admiradores do universo vertigo e, particularmente, uma que sempre gostei muito. Principalmente agora que tenho contato direto e constante com a morte, lidando tanto com o cuidado pós-morte do corpo do paciente quanto com o emocional totalmente abalado dos amigos e familiares.
Trabalhar em uma UTI, como é o meu caso, requer vasto controle do próprio emocional, pois ocorrem mais frequentemente óbitos do que altas e, como a maioria dos pacientes tem patologia crônica, inconscientemente resulta na criação de um forte laço afetivo – devido ao tempo de internação desses pacientes ser de longa duração. Funcionários da saúde precisam sempre estar preparados para oferecer apoio a quem necessitar, é nossa obrigação e somos instruídos para isso. Mas quem está disponível para nos dar esse suporte, quando afetados pelo sofrimento alheio? Somos instruídos para aguentar firmemente muitas das situações que o ser humano tende a fraquejar, mas não existe uma fórmula para compreender isso. Até conseguirmos desenvolver a tão temível e resistente armadura, sofremos mais do que muitos dos familiares, acreditem.
Cuidar das pessoas, prestar ajuda em momentos delicados de suas vidas é uma conduta altamente recompensadora. Eu amo a minha profissão, mesmo não sendo merecidamente reconhecida – decerto, persistentemente humilhada. Entretanto, é necessário compreender que esse cuidado nem sempre significa resgatar o paciente do seu leito de morte, há casos onde esse desfecho é fundamental para privá-los do incessante sofrimento. Julgo existir egoísmo tanto da família quanto de alguns profissionais, almejando prorrogar vidas miseráveis, incapazes de oferecer algo ao mundo ou gozar de qualquer nova sabedoria.
Entendam: eu nego difusão da insensibilidade, apenas afirmo ser a favor do “basta”. Já sofri demais para entender que não somos nós que ditamos quem está sujeito ou não a viver mais, nós realizamos o que estiver ao nosso alcance para prorrogar a vida de todos eles, sem discriminação. Sendo que, as pessoas morrem, simples assim. O que nos resta é cuidar dos que permanecem vivos e fadados a carregar essa eterna dor da perda de um ente querido, assim como do bem-estar mental dos profissionais - que ao decorrer da experiência transformam essa tristeza sentida em um rotineiro acontecimento, não machucando mais do que a mísera picada de um mosquito (considero esse o meu maior medo).
Essa é uma opinião particular e creio que continuará igual quando o sujeito da história for eu mesma, não terceiros (ou mesmo parentes). Não possuo conhecimento atual de qual crença estarei cogitando quando for a hora, mas, no momento, concordo com convicção acerca da música descrita. A morte é um degrau natural na vida de todos, representado quase sempre pelo sofrimento, mas também pelo alívio de finalmente abandonar essa vida mundana. Uns experimentam cedo demais, outros vão além do limite no qual são capazes de suportar.
Um adolescente bêbado acidentado de moto vem, um idoso sequelado de AVC vai;
Uma parada cardiorrespiratória vem, uma tentativa de suicídio vai;
Esse é o curso natural da vida. Acostumem-se.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Ler Um Bom Livro


Na última aula de filosofia meu professor perguntou o seguinte para a turma: “O que vocês acham mais fácil: ler um livro ou assistir televisão?” Ele se referia especificamente à TV aberta. O curioso é que eu fui a única a responder baixinho: “ler um bom livro”, enquanto a massa falou com demasiada certeza que assistir televisão é mais fácil.
        Ele me enviou um singelo sorriso, sendo a sua forma de concordar com a minha opinião descrita em uma simples frase. O tempo que transcorre entre o início e o término de uma leitura é suficiente para a pessoa se encontrar em um personagem ou em uma situação, visualizando o mesmo desfecho da própria experiência ou o caminho alternativo que foi escolhido por não percorrer. O mundo fictício frequentemente acolhe o leitor da monótona realidade enfrentada, permitindo-lhe vivenciar em um universo paralelo as fantasias provenientes dos seus sonhos nas quais ansiava por deparar-se – ora como método de fuga, ora simplesmente para se sentir vivo, ainda que não genuinamente.
         Particularmente, não há vício mais agradável que o da leitura. Nem tanto e-books, mas o cheirinho do papel misturando-se com o aroma do café faz com que haja uma preservação do imaginário do leitor a uma distância segura das míseras influências mundanas, resultando em uma vida repleta de conhecimento e criatividade (além da sabedoria do português, importantíssimo!).
        O que os livros significam para mim? Ora, simplesmente tudo! Foi ele o responsável pelo aumento do meu apreço à vida caseira, objetivando a produção de algo útil, sempre em pensamento, quase nunca me atrevendo por meio da escrita. Meus últimos anos podem ser representados por uma épica luta medieval, onde cada passo dado em busca da vitória significava uma página lida em busca do conhecimento – este, me salvando das consecutivas decepções. Então, não, a leitura não exerce somente a função de “válvula de escape”, vai muito além disso. Ela proporciona sabedoria para o leitor compreender como enfrentar com sensatez as situações nas quais ele se sujeita, servindo como um eterno professor.